POR FÁBIO VICTOR DA FONTE MONNERAT
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SUMÁRIO: I - Introdução; II - O incidente de assunção de competência e formação de precedentes qualificados; III - Julgamento de casos repetitivos e formação de precedentes qualificados. 3.1 - O tratamento “coletivizado” das questões repetitivas. 3.2 Do incidente de resolução de demandas repetitivas. 3.3 - Do julgamento dos recursos extraordinário e especial repetitivos.
I - INTRODUÇÃO
A jurisprudência, assim entendida como o conjunto de decisões reiteradas sobre uma mesma matéria proferidas por tribunais, sempre, em maior ou menor medida, exerceu algum papel no sistema jurídico.
Rodolfo de Camargo Mancuso[1] aduz que a jurisprudência desempenha diferentes papéis conforme o regime político do país e a família jurídica a que ele esteja filiado. No Estado de Direito filiado à família romano-germânica da civil law, segundo Mancuso, a jurisprudência uniformizada, em especial os enunciados e súmulas formalizados, exerce relevantíssimos papéis, pois: a) opera como uma segura diretriz para o Poder Judiciário, funcionando como um importante subsídio para subsunção dos fatos ao Direito, na medida em que sinaliza a interpretação predominante em casos análogos; b) contribui para consecução de uma ordem jurídica justa, ou isonômica, por modo que casos semelhantes possam receber respostas qualitativamente uniformes; c) complementa a formação da convicção do magistrado, atuando como fator de atualização do Direito Positivo e como elemento moderador entre o fato e a fria letra da lei[2].
O mesmo autor elenca a importância do respeito à jurisprudência reiterada e dominante para que o próprio Direito realmente tenha eficácia prática e credibilidade social, tendo em vista que tratar igualmente situações assemelhadas é algo imanente a esse ramo do conhecimento humano[3].
Nesse contexto, vale destacar o papel da jurisprudência e a importância da uniformidade de entendimentos nas hipóteses de definição do alcance e conteúdo dos conceitos vagos e indeterminados, assim entendidos “as expressões linguísticas cujos referenciais semânticos não são tão nítidos[4]” que, por isso, carecem de contornos claros e não são imediata e prontamente identificáveis no mundo dos fatos. O mesmo ocorre nas denominadas cláusulas gerais, que, por possuírem significado também vago, são sobremaneira utilizadas pelo direito contemporâneo de modo a permitir que o texto normativo se adapte à realidade fática contemporânea, por demais complexa.
Por essas razões, as normas que contêm conceitos vagos ou indeterminados e cláusulas gerais, assim como as normas com estrutura de princípios, são indispensáveis ao Direito atual e, em certa medida, transferem ao intérprete a delimitação do sentido e do alcance do enunciado normativo.
Nesse contexto, o papel do Poder Judiciário não é apenas aplicar a norma ao caso concreto, mas também terminar o trabalho do legislador, fixando, de um modo mais claro do que o próprio texto normativo, o sentido e o alcance da norma, especialmente o conteúdo e os contornos de conceitos jurídicos indeterminados, cláusulas gerais e princípios jurídicos.
Essa atividade de concretização e aclaramento do conteúdo da norma, a partir de sua constante aplicação a casos concretos, muitas vezes vai além da lide em que se formou o entendimento, pois sua constante aplicação possibilita a transformação de um conceito vago constante da lei em um conceito preciso quando colocado no contexto do Direito[5].
Obviamente, o alcance dessa certeza e desse maior grau de precisão passa por uma necessária uniformização do entendimento jurisprudencial, pois, conforme afirma Teresa Arruda Alvim Wambier, a incerteza nesses casos é inevitável, sobretudo em um primeiro momento, mas deve ser combatida, pois é desejável e até indispensável que, a partir da consolidação do entendimento do Judiciário, forme-se um consenso em relação ao alcance dessas normas[6].
Ademais, a consolidação de entendimentos acerca de questões de direito no âmbito da jurisprudência traz cada vez mais consequências no plano procedimental dos processos pendentes e futuros que venham a tratar das mesmas matérias, como a dispensa de citação do réu nas hipóteses do art. 332 do CPC, a autorização de julgamento monocrático do recurso pelo relator nas hipóteses do 932, incisos. IV e V do Código, e o cabimento da reclamação para se fazer observar o disposto em súmula ou outros precedentes vinculantes.
Como se vê, inúmeras são as utilidades da jurisprudência que, cada vez mais, vem exercendo um papel relevante sobre o conteúdo da decisão judicial, bem como sobre o procedimento.
Nesse sentido o Direito Processual brasileiro, na busca por uma prestação jurisdicional mais justa, efetiva e em tempo razoável, vem passando por uma modificação de paradigma que, progressivamente, passa a valorizar a jurisprudência formada pelas cortes superiores ou mesmo órgãos de jurisdição inferior.
Essa valorização é reflexo do reconhecimento da jurisprudência e do precedente judicial como fonte do direito[7] e da necessidade sistemática, imposta pelo princípio da isonomia, de que o Poder Judiciário ofereça a mesma resposta a todos os jurisdicionados que se encontrem em situação jurídica idêntica no plano do direito material.
O processo, deve ser entendido como instrumento do direito material, sendo decorrência dessa instrumentalidade a necessidade de uma resposta jurisdicional uniforme para todos os casos que envolvam a mesma questão jurídica[8].
A valorização da jurisprudência e a busca pela uniformização de entendimentos jurisprudenciais já era sentida no sistema processual na vigência do Código de Processo Civil de 1973, onde destacava-se, por exemplo os arts. 476 a 479 do que, desde a redação original do Código estimulava e estabelecia o procedimento de uniformização da jurisprudência.
As reformas implementadas no sistema processual – não apenas codificado mas também constitucional – maximizaram este papel, sendo o constante aumento do protagonismo da jurisprudência e sua influência no processo um dos traços característicos das alterações pelas quais passou o CPC/73 e a própria Constituição Federal.
Exemplo desta clara e sempre crescente valorização da jurisprudência podem ser encontrados na Lei n. 9.756/1998 que, alterando o art. 557 do CPC/73, passou a autorizar o relator a julgar monocraticamente o recurso com base em “súmula ou jurisprudência dominante” e na Lei n. 11.276/2006 que, ao inserir o §1º ao art. 518 do Código, passou a permitir ao juiz não “receber a apelação” quando a sentença estivesse em conformidade com súmula dos tribunais superiores[9].
Igualmente, reformas constitucionais, notadamente a implementada pela Emenda Constitucional 45/2004, passaram a estabelecer formalmente um efeito vinculante à jurisprudência sumulada pelo Supremo Tribunal Federal por meio do procedimento estabelecido no art. 103-A, acrescentado ao texto constitucional pela referida emenda.
Esta marcha rumo à redefinição do papel da jurisprudência e dos precedentes e sua crescente influência no sistema processual é ainda mais potencializada pelo Código de Processo Civil de 2015 conforme será demonstrado ao longo do presente trabalho.
O novo Código parte da premissa que a uniformização jurisprudencial possibilita vários benefícios à sociedade, pois, ao mesmo tempo, prestigia o princípio da isonomia, gera segurança jurídica (no sentido de previsibilidade), e além disso, autoriza legitimamente a aceleração da prestação jurisdicional, em casos semelhantes, gerando maior efetividade processual.
Em última análise, a observância dos precedentes e das súmulas, sobretudo aqueles expressamente qualificados pelo legislador, por gerar maior segurança jurídica, evita a sensação de que a mesma situação jurídica é tutelada por mais de uma forma pelo ordenamento jurídico, em um mesmo momento, a par de combater frontalmente um mal que chegou a ser denominado de “jurisprudência de loteria”.
Ademais, a utilidade da jurisprudência formalmente uniformizada vai além da aceleração do procedimento e do prestígio da igualdade alcançados pela decisão uniforme para todos aqueles que se encontram na mesma situação de direito material, podendo gerar uma tutela jurisdicional mais efetiva ao legitimar a concessão de tutela de evidência, com base no art. 311, inc. II ou, dispensar o reexame necessário, nos termos do art. 496, §4º, ambos do Código de Processo Civil.
Além disso, a jurisprudência uniforme pode ser um bom parâmetro para a caracterização de condutas de má-fé, nos casos em que o incidente ou recurso tenha por base um entendimento pacificamente já afastado pela jurisprudência formalmente uniformizada e consagrada em súmula ou precedente qualificado.
Portanto, valorizar os precedentes é viabilizar um processo mais ágil, justo e équo, possibilitando, naqueles processos que discutam causas idênticas já pacificadas pelos tribunais, cortes procedimentais e a repetição do entendimento consagrado.
Teresa Arruda Alvim Wambier[10], relatora final do anteprojeto do novo Código de Processo Civil, elenca três vantagens advindas desse sistema de valorização de precedentes, a saber: a) mais efetividade do processo, na medida em que, uma vez decidida a questão de maneira reiterada, o gasto de atividade jurisdicional e das partes tende a ser menor na solução da mesma questão em casos futuros; b) maior respeito ao princípio da isonomia, por estar dando-se tratamento igual, ou seja, a mesma resposta jurisdicional a casos idênticos; e c) maior previsibilidade e tranquilidade para o jurisdicionado, representações do princípio da segurança jurídica que estaria sendo prestigiado a partir do momento em que há um sistema voltado a garantir que a resposta do Poder Judiciário, órgão constitucionalmente competente para dar a última palavra sobre a interpretação e aplicação da lei, é respeitada nos casos pendentes e terá respaldo pela aplicação futura.
Nesse sentido, especialmente deve ser destacado o art. 926 do CPC, que obriga os tribunais a uniformizarem sua jurisprudência e determina que estes a mantenham estável, íntegra e coerente.
Ademais, o art. 927 do CPC arrola uma série de pronunciamentos que devem ser obrigatoriamente observados pelos juízes e tribunais, quais sejam: I – as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade; II – os enunciados de súmula vinculante; III – os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos; IV – os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional; V – a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.
Fábio Victor da Fonte Monnerat
Servidor público e Professor
Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco, Fábio Monnerat é Doutor, mestre e especialista em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, onde lecionou nos cursos de graduação e pós-graduação (lato e stricto sensu) entre 2007 e 2023, como professor assistente.
É membro da Advocacia-Geral da União, ocupante do cargo de Procurador Federal desde 2003 e, atualmente, exerce a função de Coordenador-Geral de Tribunais Superiores da Procuradoria Geral Federal, órgão da AGU. Nessa qualidade é responsável pela coordenação da atuação junto ao Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça de 165 entes públicos, dentre elas, as Universidades Federais, todas as Agências Reguladoras, tais como ANATEL, ANEEL, ANS e ANAC, além de diversas instituições públicas como a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (INPI) e Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), dentre outros.
A coordenação das ações da Procuradoria Geral Federal junto aos órgãos de cúpula do Poder Judiciário, envolve a definição das estratégias processuais dos entes públicos perante os principais tribunais do País. Além disso, implica na atuação na defesa desses entes, com elaboração de recursos e outras manifestações processuais, apresentação de memorais e realização sustentações orais perante o STF, STJ e também na Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais.
Durante sua carreira como Advogado Público foi Membro da Câmara Permanente de Orientação Judicial em Processo Civil e Gestor de Precedentes Qualificados da Procuradoria-Geral Federal, Coordenador de matéria previdenciária da Procuradoria Regional Federal da 3ª Região e Diretor da Escola da Advocacia-Geral da União em São Paulo. Durante a vacatio legis do Código de Processo Civil de 2015 foi o procurador responsável pela capacitação dos mais de 4000 Advogados Públicos em relação ao novo diploma processual, ao ocupar a Coordenação Nacional de Processo Civil da Escola da AGU, tendo realizado cerca de 40 cursos de atualização, aprimoramento, e alta formação para os membros da AGU. No período também coordenou a pós-graduação em Direito Processual Civil da Escola da AGU e Escola da Procuradoria Geral da Estado de São Paulo.
Tem 17 anos de experiência docente, tendo começado como professor assistente em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP à época em que cursava o mestrado na Instituição. Atualmente é professor do Instituto de Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP-Brasília) no Curso de LLM em Processo nos Tribunais Superiores, da Faculdade de Direito do Mackenzie – Brasília, da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Camp), da Pontifícia Universidade Católica do Rio de janeiro (PUC-Rio), da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), lecionando nos cursos de pós graduação em Direito Processual Civil.
Ao longo de sua carreira docente foi professor convidado dos cursos de pós-graduação da Universidade Presbiteriana Mackenzie – São Paulo, da Universidade Católica de Salvador – UNICSAL, da Escola Paulista de Direito – EPD, do Complexo Damásio Educacional, da Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), Universidade São Judas Tadeu (USJT), do Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina (CESUSC) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).
Também foi Coordenador e professor do Curso de Especialização em “Direito Processual Civil Aplicado” da Escola Superior da Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil em São Paulo - ESA OAB SP e já lecionou em inúmeras Escolas de Aperfeiçoamento e Atualização Profissionais, tais como a Escola Superior do Ministério Público Federal, diversas seções da Escola Superior da Ordem dos Advogados do Brasil (ESA´s), não apenas de São Paulo, como também na ESA NACIONAL e ESA´s dos Estados de Pernambuco, Espírito Santo, Santa Catarina, Amapá, Acre, Rondônia, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, assim como já ministrou cursos nas Escolas da Magistratura dos Estados de Sergipe, Amazonas, Piauí, Maranhão e Santa Catarina, e Escolas de Procuradoria Gerais dos Estados, dentre elas, da PGE Bahia, PGE São Paulo e PGE do Distrito Federal.
Na área jurídica internacional, Fábio Monnerat participou como professor palestrante de importantes cursos, tais como o seminário “Sistemi Processuali a confronto: Il Nuovo Codice di Procedura Civile del Brasile tra tradizione e rinnovamento”, em Roma, Itália (2015); o “2º Colóquio Luso-brasileiro de Direito Processual Civil”, em Lisboa, Portugal (2016); o curso “O Processo civil contemporâneo: estudos comparados Brasil-Itália”, também em Roma (2016, 2017 e 2018); e o curso “Tutela jurisdicional em uma perspectiva comparada: Europa-Brasil”, em Sevilha, Espanha (2019). Atualmente é o professor coordenador acadêmico do Curso “Solução de conflitos em uma perspectiva comparada: Europa-Brasil”, promovido anualmente na Itália pela Accademia JurisRoma, e que conta com professores, magistrados e advogados do Brasil, Itália e outros países da Europa no corpo docente e discente.
Como escritor, publicou dois livros: “Introdução ao Estudo do Direito Processual Civil”, atualmente na 6ª ed., e “Súmulas e Precedentes Qualificados: Técnicas de Formação e de Aplicação”, ambos pela Editora Saraiva. Além disso, é autor de textos e artigos científicos frequentemente divulgados em coletâneas, revistas especializadas em Direito e sites jurídicos.
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